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| Vila Nova de Milfontes vista do lado oposto do rio Mira, sob o nevoeiro. |
Desta feita, dormi bem. Embalada pelo tamborilar da chuva sobre a superfície frágil da tenda. Choveu toda a noite, mansamente. A meio da madrugada, acordei, assustada: sons dissonantes, ruídos semelhantes a trovões, destacavam-se do tom monocórdio, apaziguante, da chuva leve. Abri a porta da tenda para espreitar, preocupada que estivesse, repentinamente, no meio de uma brutal trovoada. Afinal, eram os meus vizinhos. Ali perto, estava acampado um grupo de adolescentes alemães, que só àquela hora entravam para as suas tendas. Ora, os fechos de correr das tendas a abrir e a fechar criavam a sonoridade orquestral de uma verdadeira trovoada. E eis que, com a experiência, compreendo melhor o porquê da expressão francesa fermeture éclair, que deu origem à nossa palavra composta "fecho-éclair" (éclair = raio, trovão).
Acordei às 5h30. Bebi dois cafés instantâneos frios - esquisitice que já começava a entranhar - e meditei um bocadinho. A minha, bem intencionada, meditação acabou por se resumir ao planeamento atabalhoado de como raio (éclair outra vez!), sob aquela chuva molha-tolos, iria desmontar a casa e arrumá-la, bem como ao resto, dentro da minha mochila.
Mas consegui! Envolta na escuridão, usando a luz do meu frontal e uma perícia que começava a granjear, ouvindo, não as corujas da outra noite, mas os roncos de alguns vizinhos alemães - daqueles que tocaram na orquestra-éclair - antes das 7h tinha tudo arrumado e às 7h em ponto estava a sair do parque de campismo. Ainda não tinha amanhecido.
Fiz uma breve paragem numa pastelaria para o café e o queque e às 7h30 já tinha os pés no trilho.
O trilho foi magnífico. Menos cansativo do que o do dia anterior, apesar de ter feito mais quilómetros (até Almograve foram 14,5 km e daí até onde estou a pernoitar, Cavaleiro, no Cabo Sardão, mais 10 km). A chuva molha-tolos e algum nevoeiro acompanharam-me durante todo o percurso.
Até Almograve, é um trilho sempre muito verde. Por vezes, esquecia-me que estava a caminhar sobre areia numa zona dunar no Alentejo e pensava que estava numa floresta tropical na Indonésia!
Ainda que seja bonito, há que ter em conta que muita da vegetação que reverdece aquela paisagem é invasora, como a
acácia-das-espigas, e sufoca a verdadeira vegetação dunar autóctone.
Por outro lado, a flora chega a ser tão densa, que estreita ainda mais caminhos já por si estreitos e torna por vezes difícil a passagem, especialmente para quem transporte mochilas grandes, como eu, ainda por cima com um colchonete apenso em baixo que me alarga as laterais uns bons centímetros.
Mas não há dúvidas de que é um troço bonito, que se percorre com deleite, até se chegar à simpática povoação de Almograve.
Quando planeei a caminhada, pensei em pernoitar em Almograve nesta fase do percurso, mas seriam poucos quilómetros desde Milfontes, e na vila não teria grande coisa para fazer até ao dia seguinte, para além de que não havia muito alojamento disponível, na altura em que fiz as minhas pesquisas. Poderia relaxar um pouco na praia de Almograve, que é belíssima, mas o meu objetivo não era fazer praia, mas caminhar. Por isso, decidi seguir até uma povoação pequenina no Cabo Sardão - Cavaleiro.
O troço de Almograve ao Cabo Sardão foi a parte mais bonita da caminhada deste dia.
Vi os mais belos rochedos e avistei as mais belas aves! Fiquei especialmente encantada com os corvos marinhos, que me fascinaram como me costumam fascinar as garças e as gaivotas, aves para as quais posso ficar a olhar durante horas.
São aves contemplativas, com uma certa solenidade. Na crista das rochas, os corvos marinhos permanecem por longo tempo, a observar o oceano e as lonjuras para onde não lhes apetece voar.
No lugarejo de Cavaleiro aluguei um quartinho numa casa simpática, para descansar a ossatura, meio amolgada pelas noites de tenda! Fiquei no alojamento
Luz e Sal. Gostei muito, e ainda dei umas braçadas na piscina! Por um quarto privado, com usufruto de cozinha, sala e piscina, bem como uma casa de banho, partilhada, mas apenas com um outro hóspede, paguei 50,00 €.
Cheguei ao alojamento por volta das 14h. Estava encharcada. Apanhei chuva durante a maior parte do caminho. No meu quartinho, muito simpático, pus a roupa a secar em cabides que espalhei pela divisão. Ainda vesti o fato de banho e fui dar umas poucas braçadas na piscina, para alongar os membros e massajar, com o ímpeto da água, os meus ombros, já fartos de peso. Depois, tomei o duche mais revigorante de sempre, vesti-me e fui dar uma volta por Cavaleiro, onde fiz umas comprinhas para o jantar.
Depois de escrevinhar umas coisas e ler outras tantas, aproveitei a acalmia da chuva para ir até ao Cabo Sardão. Foi uma excelente ideia, porque foi o passeio mais romântico de toda a Rota!
Pude assistir ao acender do farol, que, sob aquele nevoeiro, tomou nuances sebastiânicas, e com o rugir do mar e a solidão do lugar (não havia vivalma, para além de mim), senti profundamente a alegria de existir.